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PROVOCAÇÃO ATUAL: ÁS CONFERE “O BEIJO NO ASFALTO” E CONVERSA COM FRANCISCO CUOCO, INTÉRPRETE ORIGINAL DA CENA GAY






O ano é 1960 e o momento entrou para os anais do teatro brasileiro, como convém a tudo aquilo escrito por Nelson Rodrigues: as cortinas se abrem e a plateia assiste ao último desejo concedido a um homem que, após ser atropelado e antes de morrer, implora por um beijo na boca ao rapaz que o amparou. A cena fez todos os expectadores do Teatro dos Sete se levantarem para ir embora, indignados com o ósculo homossexual. Depois de uma interrupção de dez minutos, o público é convencido a voltar para seus assentos e conferir o desenrolar de O beijo no asfalto“, enquanto o fato que levou todos a abandonarem seus lugares vai destruindo a reputação, o casamento, a moral e a vida do beijoqueiro.
Passagem de tempo: o ano agora é 2015. O teatro é o mesmo de 55 anos atrás. As cortinas se abrem e revelam a tragédia de Nelson sob nova roupagem, novos rostos, novos cenários e nova época. Mas um vestígio do passado ainda insiste em permanecer: o comportamento da plateia acerca da cena na qual um homem beija outro homem. Sim, a obra ainda causa desconforto. Mesmo em era de amor liberado entre iguais, pensamentos pós-modernos, da presença em massa de personagens homossexuais nas novelas, do beijo gay na TV, The Weekcomo ambiente de diversão mainstream, Caitlyn “Bruce” Jenner alçada à condição de celebridade global, da filha de Gretchen se transformando em filho e dando expediente no programa da Xuxa Meneghel na Record (e sendo aplaudido pelo público) e até de Carlos Tufvesson à frente da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual, no Rio.

Transgressão precursora: no papel originalmente vivido no palco por Francisco Cuoco (e por Ney Latorraca no cinema 20 anos depois) , Claudio Lins acode o moribundo (Pablo Áscoli) que lhe pede um beijo gay, muito antes do Félix de “Amor à vida” (Foto: Divulgação)
Na noite desta quarta-feira (7/10), ÁS foi conferir o ensaio geral da nova montagem de “O beijo no asfalto”, que estreou nesta noite de sexta (9/10) no Teatro SESC Ginástico, Rio, e promoveu o encontro de gerações com dois integrantes da trupe original pra lá de especiais. A presença na plateia de Francisco Cuoco e Sueli Franco– integrantes da primeira montagem da peça – imprimiram aura retrô à sessão especial, nesta montagem na qual Claudio Lins e João Fonseca verteram a obra original em musical, com canções inéditas do primeiro que trazem à tona questões como a involução da sociedade, que ainda parece se chocar com demonstrações de afeto em público por pessoas do mesmo sexo.

Intérpretes originais de Selminha e Arandir, Sueli Franco e Francisco Cuoco conferem a montagem musical do texto de Nelson Rodrigues (Foto: Divulgação)
A dupla de atores veteranos conta que a experiência dos anos sessenta ainda é sentida hoje: “É a mesma censura com embalagem diferente”, afirmam quase em uníssono. Ele vai mais longe: “Na época, a forma de protesto das pessoas eram abandonar o teatro; hoje é mudar de canal”, destaca Francisco Cuoco, que viveu Arandir, personagem principal da trama. “O que me espanta é que ano passado eu fui assistir a uma peça em São Paulo, na qual dois atores  do mesmo sexo se beijavam, e toda a plateia rejeitou a cena através de um uivo”, destaca Sueli Franco. Para os dois veteranos dos palcos e da telinha, as formas são diferentes, mas o preconceito ainda é igual.
Portanto, preconceito velado ainda em dias atuais, que parece corroborar com a imensa corrente de pensadores que acredita tanto na atemporalidade quanto na genialidade de Nelson Rodrigues, escritor o qual, mesmo passado tanto tempo, ainda continua bem vivo. Caso até para o autor reiterar uma de suas máximas, justo aquela que afirma que “toda unanimidade é burra”. Sim, parece que ainda impera a repugnância geral de um beijo entre iguais.

Beijaço no palco: os atores da primeira montagem e da mais recente de “O beijo no asfalto”se intercalam – Sueli dá selinho em Claudio Lins e Laila Garin homenageia Cuoco (Foto: Divulgação)
“Comecei a pensar nessa peça em 2009. Para mim estava claro que tinha que fazer ‘O beijo no asfalto’, é um tapa na cara da sociedade”, frisa Claudio Lins. “Compus as musicas para dar nova roupagem a este clássico dos palcos, que continua confrontando a sociedade” completa ele, que interpreta o beijoqueiro Arandir e acaba de fazer na telinha um executivo homossexual que sai do armário, em Babilônia“, novela de Gilberto Braga. Obra que, aliás, teve grande rejeição dos telespectadores justamente por apresentar casais homossexuais sem estereótipos. Gente como a gente, sem afetações, sem o uso do humor para adocicar a dignidade das relações homoafetivas, sem máscaras…

Claudio Lins beija Marcelo Mello Jr. em cena de “Babilônia”: casal gay tratado sem afetações foi aposta de Gilberto Braga para tentar driblar o preconceito do público, que parece só aceitar na ficção relações homafetivas quando representadas como caricatura (Foto: Divulgação / TV Globo)
Coincidência ou não, “O beijo no asfalto” está sendo apresentado no mesmo local de sua estreia, funcionando agora como uma espécie de déjà vu e provando que nenhuma tecnologia da modernidade digital poderá fazer a sociedade evoluir, se esta não mudar seus conceitos. Esta nova provocação é um belíssimo convite para que o público seja convocado a expandir seus conceitos e, quem sabe, daqui a alguns anos, Nelson Rodrigues até venha a se tornar ultrapassado no quesito atualidade, com sua peça se tornando registro de uma sociedade absurda que ficou para trás.
À frente do elenco de "O beijo no asfalto", Sueli Franco e Francisco Cuoco celebram a nova montagem (Foto: Divulgação)
À frente do elenco de “O beijo no asfalto”, Sueli Franco e Francisco Cuoco celebram a nova montagem (Foto: Divulgação)

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